“Família é uma questão de vínculo!”

Conheça a história de Christian Heinlik e seus dois filhos – Entenda a adoção monoparental

Por Luah Galvão

*Essa matéria faz parte de um projeto colaborativo de entrevistas com pessoas inspiradoras que nos encorajam a ampliar nossa visão de mundo.

As histórias trazem quebras de paradigmas e nos convidam a transcender nosso pensamento e observar através de uma nova janela: mais autêntica e cheia de singularidades.

Coletivo: Adriana Jarva, Renata Orrico e Luah Galvão – criadoras e entrevistadoras

O que te motiva

*Publicado em 05/09/2022 às 13:20 para o portal da revista Exame

Última atualização em 05/09/2022 às 16:11.

Em um momento frágil e caótico, onde cada vez mais famílias inteiras fazem das calçadas seus lares, e as últimas pesquisas apontam o crescimento “exponencial” de crianças e adolescentes nas ruas – só na cidade de São Paulo já são quase 4 mil – compartilhamos uma história que faz com que a gente alargue nossa visão diante da complexidade da vida contemporânea, compreenda e apoie os novos modelos de família, afinal, como o personagem dessa próxima história vai nos mostrar: Família é uma questão de vínculo!

O nome dele: Christian Heinlik. Chris – como gosta de ser chamado, em nosso bate-papo se autodefiniu assim: “Jornalista, ceramista, locutor, letrista, profissional de marketing, meio andarilho, pai solteiro de dois filhos lindos, gay, cinquenta anos bem vividos”. Aos nossos olhos, um multipotencial alinhado aos tempos modernos, e uma pessoa com o coração do tamanho do mundo.

(Chris Heinlik – Arquivo pessoal) (Chris Heinlik/Divulgação)

Os primeiros contornos do nosso entrevistado já estão dados, agora bacana comentar que essa foi uma entrevista feita à 6 mãos, em colaboração com minhas parceiras de conteúdo Adriana Jarva e Renata Orrico (mais sobre a parceria no final da matéria). Conversamos com o Chris, quando às vésperas de completar cinquenta anos, ele estava finalizando um longo período na Europa, onde, entre outras muitas coisas, foi resgatar as origens de sua família na Estônia. Certo dia, ele nos recebeu online com sorriso largo no rosto para uma conversa sem tempo para acabar. O que trazemos aqui são algumas das chaves que ele nos entregou. Chaves que abrem novas janelas de percepção quando o assunto é família.

Christian Heinlik é pai solteiro de Pedro Vinicius e Gustavo, irmãos biológicos de uma família de muitos filhos, três deles abrigados em uma instituição no interior de Minas Gerais. Pedro Vinicius hoje com 23 e Gustavo com 20.

(Chris e seus filhos – Arquivo pessoal) (Chris Heinlik/Divulgação)

Mas a história dessa família começa lá atrás…

Em 2008, depois de um longo e cuidadoso processo de habilitação para adoção, Christian chegou na cidadezinha mineira para adotar o primogênito, sincronicamente, no dia do aniversario da criança. Pedro Vinicius fazia 8 anos. Quando o Chris soube da “coincidência” não conseguiu conter as lágrimas. Chorou mesmo. Um choro de pai de primeira viagem que se encontrou inteiramente nos olhos da criança à espera de um colo.

“Quando fui até Minas, ainda não o conhecia, estava com aquele frio na barriga. O primeiro contato foi uma delícia, o Vinicius foi super receptivo. Ele não entendia o que era adoção, sabia que tinha ali um cara que vinha buscá-lo. Mas eu sabia, tinha certeza absoluta de que ele era meu filho. Filho a gente não escolhe. Independente de qualquer coisa, ele já era meu. Naquele mesmo dia, lá na cidade onde ele estava, fomos a um restaurante almoçar. Eu fiz o prato dele, dei uma latinha de refrigerante e sentamos à mesa com a psicóloga, o marido e o filho. Fui me servir. Quando eu voltei, o Vinicius tinha pego cinco copinhos e separado o refrigerante em partes iguais para que cada um na mesa pudesse beber. Aquilo quebrou minhas pernas. Oito anos, com uma história de vida que eu sabia que não tinha sido nada fácil, e ele estava lá dividindo algo dele por igual com todos. Encontrar o Vini foi como um encontro de almas. Ele tinha 8 anos quando nos conhecemos, mas tenho certeza de que, desde o momento em que ele nasceu, ele já era meu filho.”

(Chris com Pedro Vinicius no dia de sua adoção – Arquivo pessoal) (Chris Heinlik/Divulgação)

O Gustavo só chegou 4 anos e meio depois. Chris, como pai de primeira viagem, foi orientado pelos psicólogos e assistentes sociais a adotar primeiramente apenas uma criança. E seguiu o conselho. Nesse meio tempo se estruturou emocional e financeiramente para que desse o próximo passo como pai. E assim que teve condições, partiu para a segunda adoção. “Com o Gustavo, o processo foi um pouco diferente. Ele é irmão biológico do Vini, veio pra cá com 9 anos. Ele é mais molecão, passou mais tempo no abrigo, veio com demandas diferentes. Mas a questão é que no momento da adoção do Gu, eu já era diferente, o acolhimento foi outro. Eu já tinha uma visão diferente do que é ser pai. A gente fala muito da criança, sendo que 99,9% dos problemas que podem acontecer vem da cabeça dos adultos. Não importa como aquela criança chegou naquela família, o que importa é como você vai lidar com as questões que ela traz.”

Nessa altura, você leitor deve estar se perguntando se é comum a adoção por parte de apenas 1 pessoa, o que tecnicamente é chamada de monoparental. E a resposta é sim! Hoje no Brasil, o núcleo familiar pode ser ancorado em apenas um familiar, sendo possível protocolar um pedido de avaliação para adoção, mesmo que seja um pai ou uma mãe solteiros. E uma vez que seja elegível, ou seja, receba a Habilitação do Núcleo Familiar”, o requisitante pode entrar para a fila na espera de uma criança.

Essa possibilidade de adoção monoparental para o Chris foi de um grande alívio, pois quando realmente resolveu ser pai, ainda não havia encontrado um companheiro que topasse a jornada. Amigas próximas até se ofereceram para uma ação “entre amigos”, mas Chris não se sentiu apto para tal.

“Aos 25, quando decidi ter filho, comecei a pesquisar como poderia materializar essa ideia. Nem sempre a adoção era uma vontade comum dos meus parceiros. Algumas amigas me propuseram ter filhos juntos, mas na minha cabeça, isso não encaixava muito. Primeiro, eu não queria casar com uma amiga, e ao mesmo tempo, eu queria estar presente o tempo todo. Então, como seria? Amo minhas amigas de paixão, mas não seria uma história romântica, e eu queria adotar junto apenas se fosse uma relação para ser construída.” – compartilhou.

Aos 30 começou a planejar a adoção de fato, e decidiu que seria como pai solteiro mesmo. O primeiro passo foi trocar o apartamento de 1 quarto para um de 2 para que o local pudesse acolher uma criança. Depois, trocou a vida menos rotineira de diretor cinematográfico por algo mais regrado, assumindo um trabalho na TV de uma Universidade, com salário e horário fixos. Preparou o campo. A parte burocrática seguiu junto:

“Comecei a frequentar o Grupo de Apoio a Adoção de São Paulo (GAASP), onde participei por dois anos e meio antes de entrar com a papelada, aprendi muito com eles. O processo de adoção completo é dividido em 2 fases, a primeira é uma avaliação da família que está entrando com a documentação. Se por exemplo, a pessoa é sozinha e mora com a mãe, tanto ela quanto a mãe serão avaliadas. São feitas uma série de avaliações, desde parte emocional, financeira, física, local de moradia, etc. As assistentes sociais e psicólogas checam tudo para ver se a pessoa tem espaço emocional, financeiro, etc, para a adoção. Depois que a família tem o aval dos assistentes sociais e psicólogos, passa para o crivo do juiz e dos promotores. Só depois desse percurso, a família é considerada ou não habilitada. Aí começa a segunda etapa, momento em que a Vara da Infância faz o cruzamento do perfil das crianças disponíveis à adoção, com o desejo dos habilitados para adotar. Hoje temos o cadastro nacional, onde é possível encontrar famílias em todo Brasil com determinado perfil para determinada criança, o que agiliza muito o processo. Na minha época, o cadastro era regional, dificultando os encontros. A minha avaliação durou 8 meses já com o aval do juiz. Trinta dias depois o meu filho mais velho estava chegando. Cada avaliação é diferente, pois depende das necessidades ou dificuldades que cada família apresenta no processo de habilitação.

Todos sabemos que as filas para adoção no Brasil muitas vezes são extremamente demoradas e angustiantes, e o Chris nos explicou as razões: “As crianças e adolescentes que estão esperando por uma adoção, não são necessariamente as crianças que as famílias habilitadas almejam por perfil – idade, sexo, etnia, etc…

As famílias ficam esperando um filho que não existe, então, o perfil não fecha. Infelizmente, ficam várias crianças e adolescentes aguardando famílias que nunca chegam. A adoção não é uma maneira de encontrar um filho para uma família, é exatamente o contrário disso, a adoção é uma maneira de encontrar uma família para uma criança desprovida de convivência familiar.” – complementa.

E para que você leitor conheça os números sobre a adoção em nosso país, compartilhamos alguns dados. Segundo o SNA – CNJ, em 27 de Maio de 2022, haviam 33.091 pretendentes habilitados e cadastrados para adotar. Desse número 4.046 crianças e adolescentes seguem disponíveis para adoção e apenas 4.797 estão em processo. Esses números confirmam o que foi dito por Christian Heinlik, mostrando que a questão de perfil não fecha a conta, e por isso mesmo, a fila não anda.

E o Chris volta para sua história pessoal compartilhando sua experiência: “No início, eu queria uma duplinha de irmãos que fossem recém-nascidos, ou bem novinhos. Com o tempo, fui entendendo que isso tinha mais a ver com os meus medos de como seria adotar uma criança mais velha, do que com o meu próprio desejo. Para mim – pai solteiro, um recém-nascido nem fazia tanto sentido assim. A questão que pegava em relação a adotar uma criança mais velha, aquele ‘o que ele vai trazer de bagagem?’, foi se resolvendo da seguinte forma: se a gente não acreditar que a gente pode mudar a nossa vida em qualquer idade, se a gente acha que a única etapa da nossa vida que faz sentido é a primeira, então é melhor esperar a morte chegar. Então, percebi que era medo. Aos poucos fui compreendendo que o que importa é o vínculo que se estabelece se você estiver aberto.”

Hoje Chris Heinlik olha para trás e lembra dos seus medos e receios: “Na região onde adotei os meninos, fui o primeiro homem homoafetivo declarado que foi aprovado para a adoção. Eu fiquei pequenininho quando soube disso ao longo do processo”. No fundo, seu maior receio era ser barrado em alguma das etapas do por ser diferente da maioria das famílias que pretendiam a adoção. “Quando o Pedro Vinicius chegou, ele não sabia que eu era gay, ele não foi preparado pra isso, mas aos poucos fui respondendo as perguntas dele com toda verdade. Na vida temos muitos ‘inventores de obstáculos’. Parei de usar a frase ‘Seria se fosse’, não quis mais me pegar a esse conceito. Temos que confiar na vida, conforme nos movimentamos, percebemos coisas que não vemos quando estamos parados”. E mesmo com todos os desafios do caminho, seguiu com a certeza no coração que tudo daria certo. E deu… duplamente!

(Pedro Vinicius, Chris e Gustavo – Arquivo pessoal) (Chris Heinlik/Divulgação)

E fecha o tema com chave de ouro: “A gente tem que olhar pros nossos preconceitos, porque a gente tem um monte. Se você não consegue encarar isso, nem pense em ser pai. Se você consegue, qualquer criança pode ser seu filho. A nossa cultura acha que o filho ‘de verdade’ é o filho de sangue, gerado biologicamente quando, tecnicamente, a biologia não garante vínculo. O vínculo é uma construção, é uma troca!! Tem muitos filhos biológicos que brigam com os pais e cortam relações, tem pais que abandonam filhos, tem filhos que você conversa mais, outros menos… Não é a biologia que gera o vínculo. Todo filho tem que ser adotado. O processo de vinculação não tem idade. É o caminho da construção, e a construção pode ser feita em qualquer idade e de qualquer forma.”

Chris, você pode nos dar um exemplo concreto dessa construção? – questionamos.

“Teve uma vez que eu e o Vini estávamos discutindo, ele não queria fazer uma tarefa. Chegou um momento em que ele disse: ‘Você não pode falar assim comigo, porque você não é meu pai de verdade’. Eu respondi de cara: ‘Você senta a bunda nessa cadeira e faz a tarefa, eu sou seu pai de verdade sim, e mais, é daqui pra sempre’. Ele me olhou com os olhos arregalados, sentou e fez. A verdade é que isso não é diferente do que filhos biológicos falam: ‘Queria ter nascido em outra família’, ‘Não pedi pra nascer’…

A diferença é que pais biológicos geralmente não colocam em dúvida o seu direito enquanto pais, e alguns pais adotivos fazem isso. Se um adulto é afrontado com isso e não está preparado, ele desmonta e leva a criança junto. Imagina o seu pai não ter confiança de que ele é seu pai de verdade.”

(Gustavo, Chris e Pedro Vinicius atualmente – Arquivo pessoal) (Chris Heinlik/Divulgação)

Chris, o que Pedro Vinicius e Gustavo te ensinaram? – perguntamos

“A minha vida foi e é transformada por eles. Cada um é um universo. O resumo da nossa história é que a gente aprende horrores quando escolhe ter filhos. O eixo sai do nosso umbigo. Eu sempre tento ser um melhor pai. Eu fiz algo errado… o que eu vou fazer? Pedir desculpas!! Assumir erros é difícil, mas esse é um dos aprendizados. O Pedro Vinicius me ajudou a redefinir a alegria. Ele é muito sarcástico, irônico, brinca, é incisivo. Ele me ajudou a entender que as coisas podem ser mais leves. Com o Gustavo aprendi mais concretamente a aceitar os meus limites. Aprendi que é muito importante conhecer os nossos limites, e saber que daquele ponto em diante, não dou conta.”

“Uma vez o Vini chegou em casa com uma tarefa da escola, tinha que responder várias questões sobre o início da vida. Uma delas era: ‘Por que eu tenho esse nome?’. E ele me questionou. Eu disse ‘Olha, eu não sei, mas eu acho que Pedro Vinicius é um nome muito forte e muito bonito, e como você é um menino muito forte e muito bonito, deve ter sido por isso’. Ele gostou e escreveu: ‘Meu pai não sabe, mas ele acha que…’. Nós fomos construindo essa história, preenchendo-a. Hoje ele se preocupa menos com isso e mais com a história dele agora. E isso também vai ressignificando o meu próprio passado. Eu também tenho minha história e meus dramas. Nós nos encontramos uns nos outros. A gente precisa falar das coisas com amor, e ouvir o outro com afeto. Eu acredito muito na comunicação junto com a cocriação. Com cuidado, amor, carinho, tudo fica mais fácil e todo mundo ganha.” – ele encerrou carinhosamente.

Agradecemos imensamente nosso tempo de aprendizagem com o Chris. Essa foi mais do que uma entrevista, foi uma jornada onde sentimos que as portas da família Heinlik estavam abertas para que a gente pudesse entrar. Entramos e nos sentimos em casa. Terminamos essa conversa com a esperança plantada em nossos corações. Com um vislumbre de que esse compartilhamento possa gerar um alargamento de visão e uma inspiração para as próximas famílias em formação. Famílias que esperamos, tenham como elo principal o vínculo, pois se teve algo que aprendemos com essa conversa foi: “Todo filho precisa ser adotado.”

E terminamos essa jornada, com uma frase que o Chris citou como a frase norteadora da sua vida: “É senhor do mundo quem é senhor de si”.

E se tem alguém que fez jus à essas palavras foi ele, um exímio andarilho das palavras proclamadas.

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